Demarcação da Terra Índigena

1. PONTOS SOBRE OS PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS

PRIMEIRO PONTO

Na verdade, a declarada publicação no Diário Oficial do Estado envolvido é uma conseqüência da exigência do Decreto 1.775, de 08 de janeiro de 1996. Essa exigência não foi cumprida como afirmado no PET nº 3388/RR da PGR, conforme declaração da Imprensa Oficial do Estado de Roraima (anexo 1). Não há como conciliar tamanha discrepância, que ofende frontalmente referido decreto. Esse é um fato específico e cristalino e não representa algo feito “de forma genérica”.

Por outro lado, se os estudos foram realizados “de maneira legítima e regular, por profissional habilitado e isento no curso do procedimento administrativo do qual decorreu a demarcação”, o “... estudo realizado por determinação da Justiça Federal em Roraima nos autos de ação popular... ” em que se apóiam as contestações também o foi, de maneira legítima e regular, por profissionais habilitados e isentos.

É possível que essa constatação não seja suficiente para representar “...vícios formais com força para anular o procedimento administrativo...”, como concluiu o Parecer da PGR.

 

SEGUNDO PONTO

Afirma a PET nº 3388/RR da PGR:

“No caso estudado, da 'Terra Indígena Raposa Serra do Sol', tome-se como posição do Ministério Público Federal a plena regularidade do procedimento administrativo que resultou no ato demarcatório/homologatório impugnado, porque fundado em consistente estudo antropológico, assim como criterioso na verificação de todas as fases procedimentais exigidas pela ordem legal...”

 

Essa afirmação não resiste, porém, à análise preliminar quanto à legalidade do encaminhamento dos procedimentos adotados pela FUNAI. De acordo com o Artigo 2º do Decreto n° 22, de 04.02.91, em vigor à época da apresentação dos Relatórios:


A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será precedida de identificação por grupo técnico, que procederá aos estudos …
§1° O grupo técnico será designado… e será composto por técnicos especializados…
§6°Concluídos os trabalhos… o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado…”

 

O parecer 036 da FUNAI que aprovou o relatório do grupo técnico, inicia com a afirmação:

 

O Presidente da FUNAI criou um grupo técnico interinstitucional, com a finalidade de identificar e realizar o levantamento fundiário da ÁREA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. O grupo de técnico foi constituído por:
...

 

Estaria, assim, constituído grupo, no dizer da PET nº 3388/RR da PGR, de “estudo multidisciplinar, conduzido por antropólogo, que indicará os limites do território”. A “designação de grupo técnico especializado com a finalidade de realizar estudos complementares, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional” completaria a formalização.

 

O Relatório do Grupo Técnico criado pela Portaria da FUNAI e o parecer antropológico representam todo o embasamento que deu origem e tem justificado todas as decisões do Governo Federal no que diz respeito à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A partir desse Relatório, o parecer 036 da FUNAI aprovando-o, embasa o Despacho 009/93 que serve de suporte técnico à decisão contida na Portaria Ministerial 820/98, que daria origem ao Decreto de Homologação da Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Conforme explicitado no Parecer PET nº 3388/RR da PGR, por força do art. 3º do Decreto nº 1.775/96, a Portaria nº 534, de 13 de abril de 2005, tem os mesmos suportes técnicos que a Portaria n ° 820/98.

O Parecer da PGR, propositadamente, confunde o Relatório do Grupo Técnico especializado com o laudo antropológico, ao afirmar que

 

O estudo antropológico prescrito pelo ato normativo foi realizado por profissional habilitado para tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só fato de haver sido assinado por um único perito quando a lei não exige modo diverso”.

O laudo antropológico é parte (importante) do relatório do grupo técnico especializado que faria um estudo multidisciplinar, coordenado por antropólogo. A PGR está correta em afirmar que nada impede de somente o antropólogo assinar seu laudo técnico. Assim foi feito pelo antropólogo Paulo José Brando Santilli, que assina a peça nº 7 do Relatório da Comissão Interdisciplinar.  Porém, não é justificável que somente outro antropólogo (Maria Guiomar de Melo) que apresenta outro laudo, as peças 1, 2, 3, e 4 do Relatório, conforme anexo 2, tenha assinado solitariamente o que deveria ser resultado do trabalho de todos os 27 membros da Comissão instituída pela FUNAI (cuja maioria não teve conhecimento do Relatório).

Os dois antropólogos são habilitados, mas não representavam o grupo técnico interinstitucional, pois a grande maioria dos supostos “técnicos” nomeados pela Portaria n° 1.141 não tinha nem mesmo conhecimento do Relatório circunstanciado que eles teriam que apresentar ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada, de acordo com o Decreto 22 , de 04.02.91, que a PGR afirma que houve “rigoroso respeito”.

Novamente, talvez essa constatação não seja suficiente para representar “...vícios formais com força para anular o procedimento administrativo...”, como concluiu o Parecer da PGR.

 

 

TERCEIRO PONTO

Além do Relatório não representar o pensamento dos membros do grupo técnico interinstitucional, cuja maioria não tinha conhecimento sequer que faria parte do mesmo, há que se considerar a pouca representatividade desse grupo constituído pela FUNAI.

O “... estudo realizado por determinação da Justiça Federal em Roraima nos autos de ação popular que se contrapõe àquele realizado, de maneira legítima e regular, por profissional habilitado e isento...” apresentou inúmeros “vícios formais” tais como:

  1. O grupo de trabalho interinstitucional tem a representação de dez (10) índios, todos indicados pelo CIR, que representava apenas 47% dos indígenas da região.


  2.  A Igreja Católica foi contemplada com dois representantes, um indicado pelo CIMI (sem contar com o economista da USP, também indicado pelo CIMI) e outro pela Diocese de Roraima, enquanto que outros grupos religiosos, que também atuam nessa área não possuem representação alguma nesse grupo técnico interinstitucional.


  3. A participação do Governo do Estado de Roraima foi comprometida propositalmente pela FUNAI, ao incluir no grupo técnico o Sr. Robério Bezerra de Araújo, acompanhado por seis profissionais não habilitados (motoristas e auxiliar operacional agropecuário).


  4. O Sr. Robério Bezerra de Araújo, único representante do Estado de Roraima que tinha conhecimento que faria parte desse grupo, afirmou, em Sessão na Assembléia Legislativa, documentado em Ata, “Eu não assinei documento nenhum, tanto como nenhum outro membro, eu acredito que tenha assinado. Então, realmente, para mim, foi um trabalho de má fé feito pela FUNAI”.


  5. O economista da USP, professor José Juliano Carvalho, que faria parte desse “estudo multidisciplinar” simplesmente não sabia do seu envolvimento, não participou de estudo algum e nunca teve contato com o assunto nem esteve no Estado de Roraima, muito menos na área em questão.

 

Essas cinco constatações feitas pelo “estudo realizado por determinação da Justiça Federal em Roraima” explicam a ausência da assinatura dos 26 outros membros do grupo interinstitucional criado pela FUNAI, em conformidade com a legislação vigente à época, repetindo: “concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada”. Não se trata simplesmente de permitir que o antropólogo assine seu próprio laudo, como a PGR tente tratar o assunto.

Novamente, talvez essas constatações não sejam suficientes para representar “...vícios formais com força para anular o procedimento administrativo...”, como concluiu o Parecer da PGR.  


QUARTO PONTO

Conforme pode ser visto no anexo 2, o Relatório do estudo multidisciplinar resultado da Portaria n° 1.141 é coletânea de cinco peças completamente independentes e sem conexão entre si:

 
Esse Relatório foi assinado (indevidamente) apenas pela senhora Maria Guiomar de Melo, embora devesse representar o resultado do estudo multidisciplinar do grupo.

O despacho do então Ministro da Justiça Nelson Jobim, em 20 de dezembro de 1996, com referência à Área Indígena Raposa-Serra do Sol, argumenta:

 

“Por linha idêntica de raciocínio, tem a Administração Federal o dever ético e político de resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA sobre áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites da terra indígena.

 

O Laudo 1981, na parte sul e sudoeste da área, fez delimitação que não atingia as margens dos rios Tacutu e Surumu.

 

Respaldo nesse laudo de 1981, parte da área então excluída, no sul e sudoeste, veio a ser objeto de titulação de terceiros pelo INCRA, o que ocorreu de 1982 em diante.


Impõe-se, assim, o restabelecimento da linha divisória estabelecida em 1981, em decorrência do que ficarão excluídas as propriedades mencionadas, o que, de resto, não trará prejuízos ao projeto demarcatório, em seu todo.



Por outro lado, é de se observar que o levantamento antropológico de 1993, posterior ao de 1981, não contém fundamento específico algum que demonstre ser essa parte da área indispensável à preservação indígena. Na verdade, o laudo de 1993 é absolutamente silente quanto a qualquer fundamento revisor, nessa parte, do laudo anterior”.


A FUNAI, talvez não tendo melhores argumentos, aguardou a substituição do Ministro da Justiça para argumentar que o então Ministro Jobim referia-se a documento inexistente – o laudo de 1981 – portanto não merecendo maiores comentários sobre algo que não existia. Estaria assim, justificada a desobediência à ordem ministerial anterior.

A FUNAI está parcialmente correta. O “laudo de 1981” não existe. O Ministro Jobim também está parcialmente correto. Ele não inventou toda essa história de demarcação proposta anteriormente, com tanta riqueza de detalhes.

O que realmente ocorreu foi que a senhora Maria Guiomar de Melo, em 1985 (e não em 1981) produziu um Relatório antropológico circunstanciado que sugeria a demarcação da Raposa Serra do Sol em forma de grandes “ilhas”. Tal Relatório (de profissional habilitado) sofreu inúmeras críticas por parte de representações indígenas. A FUNAI não aprovou o documento e criou outro grupo de trabalho, pela Portaria n° 1.141, coordenado pela mesma antropóloga.

Em 1993, a senhora Maria Guiomar de Melo apresenta o Relatório do grupo coordenado por ela e assinado apenas pela própria. As quatro primeiras partes desse Relatório representam um verdadeiro estudo antropológico, embora o documento tivesse outro relatório antropológico assinado pelo antropólogo Paulo José Brando Santilli, que concluía pela necessidade de demarcação de forma contínua.

O novo documento de Maria Guiomar de Melo (as quatro primeiras partes do Relatório) é reprodução simplificada de documento análogo produzido pela mesma, oito anos antes, em 1985, tão criticado pela conclusão de que a demarcação deveria ser na forma de “ilhas”. No documento de 1993, a antropóloga concluiu pela demarcação em área contínua, em conformidade com a conclusão de Santilli e atendendo às reivindicações de representações indígenas.

As premissas e os fatores condicionantes de ambos os Relatórios de Maria Guiomar são exatamente os mesmos, visto que o novo é cópia do anterior, não configurando plágio por terem sido escritos pela mesma pessoa. A única diferença entre os dois documentos é a conclusão de cada documento apontando para lados opostos.

Daí, a afirmação do Ministro Jobim, repetindo: “Por outro lado, é de se observar que o levantamento antropológico de 1993, posterior ao de 1981, não contém fundamento específico algum que demonstre ser essa parte da área indispensável à preservação indígena. Na verdade, o laudo de 1993 é absolutamente silente quanto a qualquer fundamento revisor, nessa parte, do laudo anterior”. Deveria o Ministro Jobim, à época, ter-se referido ao laudo de 1985 e não, de 1981.

A título de argumentação, mesmo supondo que a região Raposa-Serra do Sol deva ser Terra Indígena Contínua, nas dimensões preconizadas pelo Decreto Homologatório, pode-se afirmar que verdades antropológicas absolutas em relação às comunidades indígenas da região não necessariamente, tem conexão lógica alguma com a suposta verdade da continuidade da Terra Indígena. Os dois laudos de uma mesma antropóloga habilitada, com defasagem de apenas oito anos, praticamente idênticos e com conclusões opostas podem ser explicados como sendo coleções de verdades sem conexão lógica com suas conclusões. A segunda conclusão de Guiomar limita-se a corroborar com a conclusão do Antropólogo Paulo José Brando Santilli no sentido demarcar a Terra Indígena de forma contínua, sem apresentar quaisquer fundamentos ou fatos novos que lhe possam dar chancela de credibilidade, sendo, portanto, como disse o Ministro Jobim, “silente”.

Em termos de lógica formal, pode-se dizer que proposições A, B e C são verdadeiras sem a necessidade de que C seja verdade em virtude de A e B serem verdadeiras. Isto é, nessas circunstâncias, não se pode dizer que: A e B implicam em C. A verdade ou não de C pode não depender das outras duas verdades.

Não pode haver argumento lógico, dentro de qualquer racionalidade antropológica, que demonstre ser imperativo à preservação indígena manter dentro de um mesmo “Cluster” (Grupamento) entidades tão díspares e distantes quanto as Malocas Mapaé (na Serra do Sol) e Cedro (na Raposa), sabendo-se que: a distância, em linha reta, entre ambas é de 180 km (é como se tivéssemos uma maloca em Brasília – DF e outra, em Goiânia – Go, e resolvêssemos colocá-las dentro de um mesmo grupamento contínuo, expulsando os não índios de todo o percurso entre as duas cidades); e que, respectivamente, possuem etnias distintas (Ingaricó e Macuxí), línguas diferentes (Ingaricó ou Inglês e Macuxí ou português), religiões diferentes (Sincretismo Religioso de origem Protestante e Católica); enquanto uns desenvolvem atividades produtivas de caça, pesca e coleta, vivem isoladamente e não são eleitores, os outros praticam a agropecuária, vivem completamente integrados à sociedade envolvente, votam e são votados.

Considere-se ainda que a Terra Indígena Ingaricó já havia sido demarcada, pela Portaria nº 354, de 13.06.89, com uma superfície aproximada de 90.000 ha, visto que, segundo informações da FUNAI, à época, “os Ingarikós desejam uma área contínua, somente por eles habitada, sem nenhuma vinculação com terras Makuxi ou Wapixana”.

Embora a PGR, por meio da PET nº 3.388/RR, tenha afirmado que o estudo antropológico foi “... realizado de maneira legítima e regular, por profissional habilitado e isento no curso do procedimento administrativo...”; a realidade é bem diferente.

Novamente, é possível que tais constatações não sejam suficientes para representar “...vícios formais com força para anular o procedimento administrativo...”, como concluiu o Parecer da PGR.

 

QUINTO PONTO

A análise da situação fundiária da área indígena Raposa Serra do Sol, conforme apresentado no índice (anexo 2), foi feita por ONG – CIR – que representa parte dos índios da região. Ressalte-se que não foi assinada nem mesmo pelos indígenas que representavam o CIR no grupo técnico. É um documento institucional do CIR e não da Comissão Multidisciplinar, conforme exige o Decreto 22.

 

Mais uma vez, podem-se tratar de vícios que não tenham a “...força para anular o procedimento administrativo...

 

SEXTO PONTO

O Relatório que embasou a demarcação da Raposa Serra do Sol não contem análise alguma da qual se possam tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais como reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacional, ou sobre a importância da região para a economia do Estado.

Pode ser um vício pequeno demais para forçar a anulação do procedimento administrativo...

 

SÉTIMO PONTO

Mesmo que se admita que nenhum dos seis pontos levantados anteriormente, de forma isolada, seja suficiente para convencer a PGR de que são “...vícios formais com força para anular o procedimento administrativo...”, forçoso é reconhecer que a Comissão de Peritos da Justiça Federal apontou graves irregularidades no processo comandado pela FUNAI (e ainda continuam sem respostas). Elas representam um conjunto cuja amplitude agride acintosamente o devido processo legal que originou os atos administrativos que precederam e deram suporte à decisão de demarcar e homologar a T.I Raposa Serra do Sol. O processo comandado pela FUNAI é afronta direta e inadmissível à inteligência de qualquer um que o analise.

O processo de demarcação conduzido pela FUNAI deixa transparecer falta de imparcialidade, de impessoalidade e de transparência que devem respaldar todas as ações do ente público

 

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