Laudo Pericial

 

3. Quais Seriam as Conseqüências da Demarcação Descontínua?

Existem muitos cenários possíveis para uma demarcação descontínua, em ilhas ou em blocos, entre eles os mapas originais da proposta do Estado de Roraima (2000). As conseqüências positivas ou negativas seriam dependentes da maior ou menor presença do Estado.

Pelo menos parte dos índios da região, há muito sedentarizados, não depende de grande mobilidade ou nomadismo para obter os recursos de que necessitam, tendo em vista que cultivam preferencialmente áreas de solos melhores e com mais sustentabilidade. Além disso, beneficiam-se das atividades econômicas trazidas pelos colonos, e recebem um razoável suporte de ONGs nacionais e estrangeiras, igrejas, e órgãos oficiais, como a FUNAI.

Mais de 70% da área contínua pretendida não se presta ao cultivo, seja por serem solos desenvolvidos de arenitos muito pobres ou pelo relevo montanhoso, no caso das rochas vulcânicas do Grupo Surumú (apud SCHAEFER, 1997). São áreas de grande biodiversidade e endemismo, que caracterizam fortemente unidades de conservação de caráter permanente, como o Parque Nacional do Monte Roraima, mas muito pobres em caça e em recursos naturais para sua sobrevivência.

O que se tem atualmente na região Raposa Serra do Sol são cerca de 200 comunidades indígenas (malocas) que poderiam ser agrupadas de várias maneiras distintas entre os extremos:

Na verdade, podem ser formados blocos de “n” formas distintas, onde:
n = C1200 +C2200 +  C3200 + C4200 + C5200 + ... + C199200 + 1
o que resultaria num número extremamente grande.

            Por simplicidade, sem prejuízo do rigor científico, consideremos um exemplo com apenas 5 malocas (M1, M2, M3, M4 e M5). Poder-se-ia ter as seguintes 27 possibilidades de agrupamentos:

1—  {M1 }, {M2 }, {M3 }, {M4 }, {M5 }, cinco grupos, sendo cada grupo constituído de uma maloca;

2—  {M1 , M2}, {M3 }, {M4 }, {M5 };                {M1, M3 }, {M2 }, {M4 }, {M5 };
{M1 , M4 }, {M2 }, {M3 }, {M5 };              {M1 , M5 }, {M2 }, {M3 }, {M4 };
{M1 }, {M2 ,M3 }, {M4 }, {M5 };               {M1 }, {M2 , M4 }, {M3 }, {M5 };
{M1 }, {M2 , M5 }, {M3 }, {M4 };              {M1 }, {M2 }, {M3 , M4 }, {M5 };
{M1 }, {M2 }, {M3 , M5 }, {M4 };              {M1 }, {M2 }, {M3 }, {M4 , M5 }.
São dez possibilidades de se agruparem as malocas duas a duas, permanecendo as demais isoladas: C25 = 10.

3—   {M1 , M2, M3 }, {M4 }, {M5 };                 {M1, M2 , M4 }, {M3 }, {M5 };
{M1 , M2, M5 }, {M3 }, {M4 };                 {M1, M3 , M4 }, {M2 }, {M5 };
{M1 , M3, M5 }, {M2 }, {M4 };                 {M1, M4 , M5 }, {M2 }, {M3 };
{M2 , M3, M4 }, {M1 }, {M5 };                 {M2, M3 , M5 }, {M1 }, {M4 };
{M2 , M4, M5 }, {M1 }, {M3 };                 {M3, M4 , M5 }, {M1 }, {M2 }.
São, novamente, dez possibilidades de se agruparem as malocas três a três, permanecendo as demais isoladas: C35 = 10.

4—  {M1 , M2, M3 , M4 }, {M5 };                     {M1, M2 , M3 , M5 }, {M4 };
{M1 , M2, M4 , M5 }, {M3 };                    {M1, M3 , M4 , M5 }, {M2 };
{M2 , M3, M4 , M5 }, {M1 }.
São cinco as possibilidades de se agruparem as malocas quatro a quatro, permanecendo a outra isolada: C4 5 = 5.

 

5—   {M1 , M2, M3 , M4 , M5 }. Estão todas as malocas agrupadas em um único “cluster” (de forma contínua).

            Teoricamente, poder-se-ia definir o problema da demarcação “ótima” (desejável) de qualquer Terra Indígena como sendo o de encontrar uma partição em “clusters” de tal sorte que:

  1. elementos dentro de um mesmo “cluster” sejam tão semelhantes entre si, quanto se desejar, isto é, estariam dentro de um mesmo agrupamento (“ilha”) comunidades indígenas com mesma língua, mesmo estágio de desenvolvimento, afinidade de religião, costumes semelhantes, modos de produção similares, mesmas características do solo ocupado, mesmo grau de integração com a sociedade nacional, relações de parentesco e consangüinidade, e relativamente próximas, em termos espaciais (físicos);
  2. elementos em “clusters” distintos devem apresentar características das diversas variáveis antropológicas relativamente diferentes, entre si.

Existem, na literatura de “Cluster Analysis”, muitas sugestões de como se medir as diferenças ou as similaridades entre os elementos em análise, envolvendo não apenas variáveis numéricas (que admitiriam uma medida de distância euclidiana) como também varáveis do tipo: língua, história, religião, costumes, modo de produção, existência de rivalidades tribais, etc. Pode-se também calcular por meio de uma função “qualidade” quão próximo do ótimo desejado se estaria, em cada situação.

Definida uma medida de similaridade ou de diferença (distância no sentido amplo) entre as comunidades indígenas da Área Raposa Serra do Sol, d(i,j), em que i e j representam duas comunidades indígenas quaisquer, nessa área, poder-se-ia aplicar um método iterativo de definição dos “clusters” (“ilhas”), reduzindo substancialmente o trabalho de análise das várias possibilidades.

No caso do exemplo simplificado das cinco malocas, o problema ficaria reduzido à análise de apenas cinco possibilidades, no lugar das 27 apresentadas acima, utilizando-se do seguinte método iterativo:

Existem programas de computador especiais para equacionar e resolver, aplicando o método iterativo descrito acima, o problema do grupamento (“clusters”) ótimo de digamos, 200 malocas indígenas. É suficiente que se defina uma medida (que possa ser considerada razoável) de similaridade entre as diversas malocas (considerando as diferenças e similaridades antropológicas, entre elas) e que seja explicitada a tolerância que se admite para diferenças, dentro de um mesmo “cluster”.
 
Voltando ao caso simplificado de apenas cinco malocas, suponhamos que as cinco malocas estejam distribuídas espacialmente, como indicado na parte superior da figura a seguir:


Uma simples visualização da dispersão espacial das Malocas M1 , M2 , M3, M4 , M5 nos indica que a forma mais coerente de fazer grupamentos ou “clusters” seria em dois grupos: G1 = { M1 , M2 , M3 } e G2 = { M4 , M5 }, isto, levando em consideração apenas a proximidade espacial entre as malocas e o desejo de que fiquem juntas as comunidades indígenas “próximas” (similares) e que fiquem separadas aquelas que são mais distantes, seja qual for a medida de similaridade.

Infelizmente, as situações do mundo real não são tão simples como as apresentadas no exemplo anterior, de apenas cinco malocas e que se leve em consideração, para definição de grau de similaridade a distância cartesiana (geográfica). Em primeiro lugar, o número de malocas é bem superior a cinco, na verdade, é próximo a 200. Em segundo lugar, as diferenças que recomendariam a separação de comunidades indígenas díspares e as similaridades que induziriam a que se reunissem em “clusters” diferentes malocas são bem mais complexas do que a simples separação espacial, envolvendo variáveis discretas (que assumem valores de 1 ou zero, ou que apresentam uma quantidade finita de alternativas).

No caso concreto da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, mesmo sem o rigor necessário da análise de “clusters”, essa teoria é suficiente para demonstrar que tomar a decisão de demarcação em forma contínua (com 1.780.800 ha, como pretendido pela FUNAI e estabelecido na Portaria 820/98) significa dizer que a sociedade considera “ideal” a opção de um único “cluster”, mantendo juntos os indígenas com as diferenças correspondentes, existentes em toda a área em questão. Isto é, a distância lato senso (em termos de distância física, diferenças geográfica, diferenças religiosas, culturais e de modos de produção, entre outras) entre, por exemplo, a Maloca Mapaé (Ingarikó da Serra do Sol) e os macuxis da Maloca Cedro são admissíveis para um mesmo “cluster”. Ao se constatarem as diferenças entre essas duas malocas, como apresentado no quadro a seguir:

Isso significa que nossa tolerância chegou a esse ponto de admitir que as malocas Mapaé e Cedro sejam similares. Se for esse nosso grau de entendimento, seremos forçados, para manter nossa coerência, a considerar como similares, portanto devendo permanecer no mesmo “cluster”, as malocas Limão, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e Xiriqui, da Terra Indígena São Marcos. Na verdade, as similaridades nesse caso são bem maiores do que no caso anterior.


Mesmo sem utilizar a análise de “cluster” em toda sua formalidade técnica, sua metodologia já nos permite, a título de exercício, afirmar que, aceitando a situação de demarcação em forma contínua como verdadeira, isto é, que a sociedade está disposta a juntar povos indígenas com tais diferenças e distâncias, utilizando essa mesma análise, com a mesma racionalidade, não se poderia deixar de fora, e manter isoladas, além da Terra Indígena São Marcos (654.110 ha), as seguintes Terras Indígenas já demarcadas ou em processo de demarcação:

10) Mangueira (Macuxi, Alto Alegre):                                    4.064 ha;
11) Manoa/Pium (Macuxi e Wapixana, Bonfim):              43.337 ha;
12) Ouro (Macuxi, Boa Vista):                                                           13.573 ha;
13) Pium (Wapixana, Alto Alegre):                                         4.608 ha;
14) Ponta da Serra (Macuxi, Boa Vista):                             15.597 ha;
15) Santa Inez (Macuxi, Boa Vista):                                     29.698 ha;
16) Serra da Moça (Wapixana, Alto Alegre):                                   11.626 ha;
17) Sucuba (Macuxi, Alto Alegre):                                          5.983 ha;
18) Truaru (Macuxi e Wapixana, Boa Vista):                        5.653 ha;
19) Raimundão (Macuxi, Alto Alegre):                                  4.308 ha;
20) Barata Livramento (Macuxi/Wapixana, A.Alegre):      13.250 ha;
21) Boqueirão (Macuxi/Wapixana, Alto Alegre):               13.950 ha;
22) Jacamin (Wapixana, Bonfim e Caracarai):               179.200 ha;
23) Moskow (Macuxi/Wapixana, Bonfim):                          13.750 ha;
24) Tabalascada (Wapixana, Bonfim):                                   8.250 ha;
25) Anaro:  sem informações;
26) Muriruh:  sem informações.

Basta uma simples visualização do Mapa do Estado de Roraima para verificar a inexistência de lógica para uma proposta desse tipo. Estar-se-ia isolando a capital do Estado, ou mesmo, englobando-a. O mesmo argumento que faz alguém argüir pela extinção do Município de Uiramutã, aplicando-o à nova situação gerada deve obrigatoriamente conduzir à absurda extinção de Boa Vista.

Entre as possíveis conseqüências de natureza discutível, positivas ou negativas, teríamos:

Independente da formulação de possíveis cenários internacionais sobre as conseqüências da demarcação conforme a Portaria n° 820/98 ou não se faz necessária uma apresentação do atual panorama das relações internacionais que acreditamos ser valida para embasar qualquer resposta.

 

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