Laudo Pericial

 

1 - A área Raposa Serra do Sol é Terra Indígena?

Sim. Sem dúvidas, a área Raposa Serra do Sol é terra indígena, visto que possui comunidades indígenas tradicionais. Conforme relato no item “3.1 Antecedentes Legais e Administrativos”, desde 1917, por meio de uma Lei do Estado do Amazonas, até a presente data, existem indicativos de autoridades governamentais no sentido de reconhecerem e demarcarem a área indígena destinada aos Macuxis e Jaricumas. Ademais, em 15 de junho de 1989, foi demarcada a Terra Indígena Ingarikó, com 90.000 ha, por meio da Portaria InterMinisterial n° 154/89, com base em estudos antropológicos e resultado de um grupo de trabalho interministerial.

A área Raposa Serra do Sol possui comunidades tradicionais indígenas culturalmente diversas (Macuxi, Taurepang, Patamonas, Ingarikó, Wapixana), ao lado de comunidades não-indígenas.

Os direitos indígenas foram incluídos em capítulo próprio da Constituição de 1988. A definição de terra indígena no artigo 231 inclui explicitamente não somente “os espaços de habitação e as áreas cultivadas” mas também “o território demandado para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem estar dos povos indígenas, bem como a terra necessária para sua reprodução física e cultural, em conformidade com seus hábitos, costumes e tradições”.

Existe o entendimento que a jurisprudência da posse permanente indígena só se configura quando presentes, cumulativamente, os quatro pressupostos prescritos no parágrafo 1° do artigo 231 da Lei Maior.

Por outro lado, a posse da área como indígena, em seu aspecto imemorial, como emanada dos laudos antropológicos analisados no item 3.2, é historicamente aberta a interpretações. Praticamente de um mesmo laudo antropológico, tiraram-se conclusões tão díspares quanto à demarcação de forma contínua e em “ilhas”, conforme discutido anteriormente. Ademais, há diferentes interpretações históricas quanto ao momento definido da chegada dos povos Caribes (Macuxi e outros) à região, que pode ter ocorrido simultaneamente ao início da colonização do Alto Rio Branco por Brasileiros e Portugueses, grande parte oriundos do Nordeste ou da Capitania de Rio Negro (Lobo D’almada, 1787; Evans e Meggers, 1960; Edwards & Gibson, 1979). Tais interpretações vêm sendo desprezadas pelos sucessivos laudos antropológicos (1985; fls. 279-374; Proc. FUNAI BSB 32332/77, e  1993; fls. 02-127; Proc. FUNAI BSB 889/93).

Nos documentos portugueses relativos à conquista portuguesa do Alto Rio Branco, até a construção do Forte de São Joaquim no final do século XVIII, não há menção aos povos Macuxis na área entre o Tacutu e o Uraricoera, mas sim aos extintos Sapará e Paravilhana, além dos Wapixana, estes da região do Rio Tacutu (Ribeiro de Sampaio, 1776; Barata, citado por Nabuco, 1903). Na expulsão dos Espanhóis de Santa Rosa, no Uraricoera, por exemplo, Felipe Sturm, o futuro construtor do Forte São Joaquim, encontra os índios Erimissana, Sapará e Paravilhana, todos já em contato com tropas portuguesas vindas de Barcelos, mas nenhum Macuxi, do Uraricoera até o Tacutu (Question de Limites ..., 1903). A chegada e estabelecimento rápido dos Macuxis parece ter sido intimamente associada ao ciclo do gado do Alto Rio Branco, à partir de 1786. Sua entrada na Guiana, vindos do Orenoco, é atribuída por Edwards & Gibson (1979) ao processo de migração Carib ao Rio Essequibo, e daí, ao Rupununi e Rio Branco, pela inexistência de qualquer barreira montanhosa que servisse de obstáculo à sua migração. Tais dados são corroborados pelos dados arqueológicos de Evans e Meggers (1960).

Assim, a virtual contemporaneidade da chegada e estabelecimento de Macuxis e íbero-brasileiros e sua co-evolução e integração ao Alto Rio Branco urge a necessidade de acautelar-se e reconhecer direitos legais aos colonos pioneiros tradicionais e seus descendentes, bem como os descendentes de Macuxis, Ingarikós, Wapixanas e demais etnias presentes na área.

Com a ressalva dos graves erros e vícios insanáveis do processo administrativo da área contínua proposta, seguem algumas ilações:

2.1. Alteração Econômica Significativa para os Índios

Se tal continuidade pressupõe e implica na exclusão das comunidades tradicionais aí instaladas, como sói ocorrer, e considerando a história de permanente contato entre as comunidades de colonos e os indígenas, poderia haver retrocesso econômico significativo, já que grande parte das comunidades indígenas está economicamente indissociável dos segmentos não indígenas do Norte/Nordeste de Roraima.

Ao longo do tempo, em decorrência da convivência com não índios, têm ocorrido alterações substanciais na cultura indígena local, tais como: mudanças na religião; alterações nos critérios de sucessão tribal; e mudanças nos modos de produção e inserção no sistema de comercialização capitalista.

Com a retirada dos não índios da região, restariam muitas dúvidas no que diz respeito às acomodações sócio-econômico-culturais decorrentes. Como seria praticamente impossível o retorno às origens pré-contato, e dada a infra-estrutura existente na região, as possíveis conseqüências seriam:

A diversidade multicultural no Norte/Nordeste de Roraima, em claro contraste com outras áreas indígenas brasileiras, como a área Ianomami, deve ser destacada. A maior parte das comunidades indígenas nessa área não são caçadoras-coletoras, mas sim amplamente sedentarizadas e integradas à sociedade envolvente.

2.2. Reflexos na Economia do Estado

A economia do Estado de Roraima é ainda frágil e altamente dependente dos recursos federais. As novas perspectivas com a produção de grãos no lavrado (savanas) e de arroz irrigado nas várzeas estão a se apresentar como possíveis soluções para o problema econômico do Estado. Apesar das atuais atividades econômicas (arroz irrigado, pecuária e grãos) do Estado de Roraima não estarem ainda contribuindo de forma significativa para o desenvolvimento regional nem representarem fonte importante de recursos públicos para o governo estadual.

Na falta de uma política agropecuária consistente por parte do Estado de Roraima, devido à instabilidade da estrutura fundiária e às ameaças de desapropriação pela FUNAI, a atividade pecuária tem decrescido sistematicamente.

A evolução histórica da produção de arroz na região Raposa Serra do Sol, apresentada na tabela a seguir, demonstra que essa atividade vem ganhando força econômica, ao longo dos últimos anos, além de apresentar alta produtividade.

ANO

Área Plantada (ha)

Produtividade (t/ha)

Produção (t)

1984

        60

         4,0

       240

1985

        60

         4,0

       240

1986

        60

         4,0

       240

1987

        60

         4,0

       240

1988

        60

         4,0

       240

1989

      200

         4,0

       800

1990

   1.200

         4,5

    5.400

1991

   1.500

         4,8

    7.200

1992

   2.000

         4,8

    9.600

1993

   2.420

         5,0

  12.100

1994

   2.800

         5,0

  14.000

1995

   4.000

         5,2

  20.800

1996

   5.000

         5,5

  27.500

1997

   6.500

         5,8

  37.700

1998

   6.900

         5,9

  40.710

1999

   8.500

         6,0

  51.000

2000

   9.500

         6,0

  57.000

2001

 10.000

         6,1

  61.000

2002

 11.000

         6,2

  68.200

2003

 12.000

         6,35

  76.200

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de Roraima.

Independentemente de existirem áreas relativamente equivalentes para a produção agropecuária fora das áreas indígenas (principalmente Raposa Serra do Sol), a demarcação em área contínua traria fortes reflexos imediatos na produção agropecuária do Estado de Roraima, comprometendo um longo trabalho de planejamento agrícola realizado por órgãos públicos de pesquisa agropecuária, nos últimos anos.

A situação gerada pela demarcação em área contínua pode comprometer irreversivelmente a possibilidade de futura expansão da fronteira agrícola que poderia gerar alto crescimento econômico para o Estado, com reflexos no número de empregos e na oferta de alimentos abundantes e relativamente baratos para a Região Norte. Com o bloqueio de grandes áreas de savana atualmente utilizadas comercialmente pela agropecuária na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, poderia gerar de imediato forte pressão para implantação de novas pastagens em áreas florestais das bacias dos rios Uraricoera e Amajarí, por exemplo, bem como no Sul do Estado, causando, sem dúvida, elevados índices de desmatamentos.

A homologação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, em área contínua, poderia gerar um êxodo rural, principalmente para a cidade de Boa Vista, de:

                 
                  Essa migração poderia agravar os atuais problemas de inchamento urbano da capital do Estado, devido à impossibilidade dessas pessoas serem absorvidas pela frágil economia atualmente existente em Roraima.

 


2.3. Exacerbação dos Conflitos Intergrupos

Um importante aspecto da demarcação em área contínua é o da incompatibilidade política de reunir sob uma mesma égide, áreas tão distantes como a região do Alto Cotingo, território Ingarikó, e as áreas Macuxis do médio e baixos Cotingo e Maú. Tal unicidade territorial pretendida poderia trazer graves conflitos entre, por exemplo, essas comunidades rivais, na medida em que a população Macuxi poderia tentar transgredir áreas dos Ingarikós.

2.4. Choques de Ordem Religiosa

Há mútuo ressentimento político-religioso entre os diversos grupos, indígenas doutrinariamente católicos e aqueles que seguem religiões protestantes, como, por exemplo, as Malocas do Contão e Flechal, protestantes, e as do Cantagalo e Maturuca, católicas, com profunda divisão da comunidade, quanto ao real benefício da proposta de demarcação em área contínua.

2.5. Imbróglio Jurídico-Constitucional

A existência de sedes municipais e distritos com populações declaradamente não-indígenas (Uiramutã, Água Fria, Mutum, entre outros) complica ainda mais os reflexos da demarcação, em área contínua. Os residentes dessas localidades, quer indígenas quer não índios, se veriam opressas e sem a presença e proteção legítima do Estado no oferecimento dos serviços de que necessitam.

É obrigação do poder público estadual já estabelecido manter a rede de serviços nas sedes e distritos. O que se tem observado é a diminuição gradativa de aplicações de recursos públicos estaduais, em decorrência dessa situação pré-demarcação. Por exemplo, de acordo com dados fornecidos pelo governo estadual (Anexo 06), os serviços realizados na Área Raposa Serra do Sol vêm decaindo de forma extraordinária, nos últimos anos, como demonstra o quadro a seguir:

Serviços Realizados pelo Governo de Roraima na Área Raposa Serra do Sol, no período 2001-2003
                                                                                                          Em R$ 1.000,00


Serviço

2001

2002

2003

Construção de Pontes de Madeira

252,0

 

 

Recuperação de Pontes de Madeira

165,2

73,5

 

Recuperação de Pontes de Concreto

 

 

 

Recuperação de Vicinais

2.415,0

2.235,0

90,0

TOTAL

2.832,2

2.308,5

90,0

Fonte: Secretaria de Estado do Índio – 2004.

O quadro realista e crucial é de que, com o passar do tempo, as vilas, mescladas e miscigenadas de índios e não índios, foram se formando, como Vila Água Fria, Vila Socó, Vila Uiramatã, Vila Mutum, e vila Pereira (Surumú), com a presença da Administração Pública. Em boa parte desses aglomerados, a presença do Governo em nível tanto estadual quanto federal, se faz sentir por meio de Escolas Públicas de Ensino Fundamental e Médio, Destacamentos da Polícia Militar, serviço de águas, Quartel do Exército, Delegacias de Polícia Civil, Geradores de Eletricidade, com rede de distribuição, Postos de Saúde e Telefônicos. Há serviços de ônibus, pistas de pouso para pequenos aviões, e em muitas casas há televisões conectadas com antenas parabólicas, repetidoras de rádio e toda uma estrutura de atividades desenvolvidas pelos habitantes desses núcleos.

Sendo a Constituição Federal um conjunto de direitos e deveres aplicáveis a toda a sociedade brasileira, é natural que existam em seu bojo conflitos de interesses e de direitos de diferentes segmentos da sociedade. Dessa forma, existem direitos assegurados:

A forma de conciliar esses direitos é um exercício de cidadania que exige cautela. Esses pressupostos devem especialmente ser aplicados à região da Raposa Serra do Sol, onde coexistem populações indígenas e tradicionais em intensa e dinâmica inter-relação cultural desde os fins do século XVIII, como atestam os textos históricos coligidos por ocasião do litígio Brasil-Inglaterra (Question de limites... 1903).

2.6. Heterogeneidade Geográfica e Multicultural

A imposição de uma área única onde há, de fato, heterogeneidade geográfica e multicultural, pode significar muitas complicações para a acomodação das forças sociais na nova organização político-cultural dos indígenas da região. Os padrões de agricultura e subsistência dos Ingarikó da Serra do Sol, por exemplo, são inteiramente  distintos  dos Macuxis no baixo Cotingo/Surumu. E estes diferem dos Macuxis integrados da área do Flechal, que cultivam apenas solos ricos da área montanhosa.

Trata-se de uma área, com grandes espaços vazios, e grupamentos humanos separados por grandes distâncias, além da existência de vários grupos com heterogeneidade cultural e modos de produção distintos.

2.7. Reflexos Sociais e na Segurança

A área Raposa Serra do Sol, no caso de ser homologada de forma contínua, terá pouca densidade demográfica, vasta extensão de fronteira e controle limitado do Estado-Nação, o que poderá favorecer:

A diminuição do controle do Estado-Nação sobre os destinos ambientais e estratégicos da Área do Norte/Nordeste de Roraima, entre a serra de Pacaraima e o os cursos do Maú/Tacutu encerra questões de interesse nacional e proteção cultural e ambiental emblemáticas, quais sejam:

  1. Vasta área de rochas proterozóicas riquíssimas em recursos minerais ainda intocados (ouro e diamante, entre outros), e única no norte da Amazônia (vide CPRM, 1990 e DNPM- Projetos e Molibdênio de Roraima), em fronteira trinacional (cópia anexa do mapa de áreas de futuras prospecções, recomendada pelo relatório geológico de 1990);
  2. Enorme espaço de biodiversidade ainda tão pouco estudado pela sociedade brasileira, apesar de solos predominantemente pobres e de baixa capacidade de suporte(Schaefer, 1991), oficialmente reconhecido no documento do MMA como a área RN024- Território Indígena (TI) São Marcos e TI Raposa Serra do Sol (Avaliação e Identificação de ações prioritárias para conservação, utilização, ... da Biodiversidade na Amazônia Brasileira, 1990);
  3. área de elevada importância ambiental, que carece de medidas de proteção efetivas para sua conservação;
  4. área de grande interesse geopolítico devido aos problemas de limites entre a Guiana e a Venezuela.

Além disso, a possível diminuição do Estado em área tão complexa pode configurar grave erro histórico, que poderá suscitar futuras questões territoriais como processos de secessão, ou de integração, visto o ocorrido na Revolta do Rupununi (1969), quando índios habitantes da fronteira com o Brasil, comandados por fazendeiros, se rebelaram contra o governo da Guyana e tentaram proclamar um Estado independente, imediatamente sufocada pelas autoridades de Georgetown. Existem evidências que este movimento foi em parte promovido pela Venezuela como forma de pressão em sua disputa territorial pela margem esquerda do Rio Essequibo.

2.9. Estratégia de ocupação dos Espaços

O que se observa na Área Indígena Raposa Serra do Sol, nos últimos cinco (5) anos é um aumento desmesurado do número de pequenas comunidades indígenas, sem que tenha havido aumento significativo correspondente no contingente populacional. Uma possível explicação seria a existência de uma estratégia de ocupação de espaços territoriais vazios da região visando à reivindicação  de maiores áreas pelas comunidades indígenas.

A tabela a seguir mostra claramente essa situação, onde se tem um aumento extraordinário de 279 % no número de malocas de 1-50 habitantes, enquanto o número de comunidades acima de 151 habitantes permaneceu constante, entre 1996 e 2003. Ademais, enquanto o número de malocas aumento 95 %, sua população global aumentou apenas 46 %, em 7 anos.
 
Área Indígena Demarcada Raposa Serra do Sol
Evolução da Ocupação Territorial


Faixa de populações das Malocas

1996(1)

2003(2)

Crescimento (%)

Número Malocas

População

Número Malocas

População

Número Malocas

População

1  - 50

24

1.550

91

3.291

279

112

51 – 100

27

1.871

45

3.272

67

75

101-150

16

1.973

18

2.437

12

24

151-500

21

4.225

21

4.574

0

8

501-1000

3

1.322

3

2.403

0

82

Total

91

10.941

178

15.977

95

46

(1) Fonte: Comissão Técnica Especial do Governo de Roraima.
(2) Fonte: Fundação Nacional de Saúde – FUNASA

Com a demarcação em área contínua, a tendência natural seria a ocorrência do retorno das populações localizadas nas pequenas malocas para as comunidades maiores, normalmente dotadas de melhores estruturas de apoio para a subsistência.

2.10 Conclusão

Em síntese, os aspectos fundamentais da demarcação em área contínua são:

 

 

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