Laudo Pericial

 

3.2 O Processo Demarcatório

Antes de tecer qualquer comentário a respeito dos quesitos apresentados pelo Juiz da 1ª Vara Federal, é necessário que sejam explicitados alguns conceitos embutidos em certos posicionamentos sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Principalmente, a partir de 1977, até o presente, o debate público sobre a demarcação da TI Raposa Serra do Sol vem se radicalizando e reduzindo toda a problemática da demarcação à dicotomia: Contínua ou em “Ilhas” (Descontínua). O problema tem sido tratado como se existissem somente essas duas possibilidades e os conflitos resultantes têm-se agravado, desde então. Os ânimos estiveram e continuam acirrados, indo além de um simples confronto de idéias. De um lado, os índios vinculados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), juntamente com diversas organizações não-governamentais e setores da Igreja Católica, apóiam a homologação da demarcação feita pela FUNAI, de forma contínua, como se pode concluir, facilmente, pelos posicionamentos contidos nos endereços eletrônicos do CIR (http://www.cir.org.br/) e do CIMI (http://www.cimi.org.br/); do outro lado, estão os índios não alinhados com as teses do CIR e expressiva parcela da população local e estadual não indígena, tais como o próprio Governo do Estado e os produtores rurais que argumentam sobre a necessidade de preservarem as áreas de produção de arroz, dada sua alta produtividade, como é de conhecimento público.

Na verdade, a própria opção de demarcação em área contínua é ambígua, visto que pode ser contínua, com variadas dimensões. É possível, por exemplo, que a demarcação da TI Raposa Serra do Sol seja feita de forma contínua, com um total de, digamos, 1.000.000 ha, liberando porções de terra que estejam na fronteira de seus limites pretendidos, ou que estejam nas vilas e no Município de Uiramutã.  É possível que a demarcação em forma contínua abranja um total de 1.678.800 ha, como previsto pela Portaria n° 820/98, de 11 de dezembro de 1998, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, nos moldes preconizados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Essa é a tese do Conselho Indígena de Roraima (CIR). É possível, também, que ela seja contínua e abranja um total de 2.000.000 ha, como pretendido por alguns indígenas, ou mesmo que seja muito maior, englobando outras áreas (próximas e similares) tais como a Terra Indígena São Marcos e outras 25 Terras Indígenas já demarcadas, em forma descontínua (“Ilhas”).

São, portanto, inúmeras as possibilidades da demarcação ser feita de modo contínuo. Porém, ao nos referir, daqui por diante, à demarcação contínua significa a demarcação da área pretendida pela FUNAI e apoiada pelo CIR, por setores da Igreja Católica e por várias organizações não-governamentais nacionais e internacionais.

Os defensores da área contínua querem se referir à área contínua, com 1.678.800 ha. previstos pela portaria do Ministério da Justiça n° 820/98, não aceitando qualquer redução nessa área, mesmo que permanecesse contínua. É uma espécie de “tudo ou nada”. Já os defensores da área descontínua desejam resguardar supostos direitos de produtores agropecuários e comerciantes, e a manutenção das vilas instaladas e do Município de Uiaramutã.

A situação hoje é posta como uma opção, como se fosse simples, entre:

A justificativa dos limites previstos na Portaria 820/98 foi uma decorrência do Parecer n° 036/DID/DAF, publicado no DOU em 21.06.93, de autoria do Antropólogo da FUNAI, Artur Nobre Mendes. Esse parecer aprova o Relatório do Grupo Técnico Interinstitucional criado pela Portaria n° 1.141, de 06.08.92, que inicia com a afirmação:
“O Presidente da FUNAI criou um grupo técnico interinstitucional, com a finalidade de identificar e realizar o levantamento fundiário da ÁREA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. O grupo de técnico foi constituído por:

Sem dúvidas, competem à União a decisão administrativa e política sobre a interpretação do texto constitucional que prevê a proteção ao interesse das comunidades Indígenas e a conseqüente demarcação de terras indígenas.

O relatório desse grupo técnico é a origem que embasa e justifica todas as decisões do Governo Federal, até o presente momento. A partir desse relatório, o parecer 036/DID/DAF, aprovando-o, embasa o Despacho 009/93 que serve de suporte técnico à decisão contida na Portaria Ministerial 820/98, que daria origem ao Decreto de Homologação da Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Tudo gira em torno do resultado dos trabalhos desse grupo técnico interinstitucional, que teria a participação de instituições que possuem interesses no caso e da academia.

A FUNAI dá muita ênfase ao aspecto interinstitucional do Relatório do Grupo Técnico e ao fato de terem “seguido à risca todas as normas administrativas e jurídicas”, ao rebater o laudo antropológico apresentado pelo Governo do Estado, em 1993, argumentando:
“(...) 4. os trabalhos realizados no âmbito administrativo do Grupo de Trabalho instituído pela FUNAI, envolvendo além de quadros especializados da FUNAI e de outros órgãos da administração federal, técnicos do governo estadual de Roraima e pesquisadores de universidades públicas, seguiram à risca todas as normas administrativas e jurídicas que tratam do procedimento de identificação e demarcação de áreas indígenas; (...)”

De acordo com o parágrafo 7° do Artigo 2° do Decreto n° 22, de 04.02.91, sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, em vigor à época da apresentação do Relatório: “concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada” (grifo nosso).

Embora, à época da apresentação do Relatório do Grupo Técnico, 1992/1993, os decretos em vigor fossem os de n°s 22/91 e 608, de 20.07.92 (Anexo 04), mais tarde, o Decreto 1.775 de 08.01.96 (Anexo 05) revogou aqueles dois Decretos, no sentido de acrescentar novas exigências de envolvimento do Estado e dos Municípios diretamente afetados.

 Os parágrafos 6° e 7° do Artigo 2° do Decreto n° 1.775, de 08.01.96, estabelecem que:
“§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará (grifo nosso) relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
§ 7 ° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação,acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser fixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.”

Como o Relatório foi assinado apenas pela antropóloga Maria Guiomar de Melo, representante da FUNAI, é de se supor que ela estivesse representando todo o grupo dos 27 técnicos das várias instituições envolvidas, para atender ao disposto no Decreto n° 22/91. Na verdade, ela não estava representando o grupo, pois, como ficará demonstrado, a grande maioria dos “técnicos” nomeados pela Portaria n° 1.141, de 06.08.92, não tinha nem mesmo conhecimento do Relatório circunstanciado que eles teriam, segundo o parágrafo 7° do Artigo 2° do Decreto n° 22, de 04.02.91, que apresentar ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
 
Existem, além da desobediência ao Decreto 22/91, sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, (pois o grupo técnico interinstitucional não apresentou seu relatório), em vigor à época da apresentação do Relatório de autoria de alguns e assinado apenas pela antropóloga Maria Guiomar de Melo, inúmeros questionamentos com relação à própria constituição do grupo técnico interinstitucional e ao conteúdo do relatório supostamente resultante de seu trabalho.

Inicialmente, vale destacar que estão envolvidos nessa problemática de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol diferentes atores, com interesses variados: Indígenas favoráveis à demarcação, em área contínua (cerca de 80% dos índios, segundo estimativas do CIR); Indígenas que desejam a demarcação, com a exclusão de aproximadamente 10% da área, para facilitar o desenvolvimento da região e sua integração com a sociedade nacional; produtores agropecuários, incluindo proprietários de fazendas regularmente tituladas pelo INCRA; comerciantes estabelecidos nas sedes municipais e nas vilas; funcionários públicos federais, estaduais e municipais lotados em unidades militares, escolas públicas, postos de saúde, etc; religiosos de diversas crenças; garimpeiros; cidadãos não indígenas residentes nas diversas localidades; autoridades municipais envolvidas; autoridades estaduais; etc.

O Conselho Indígena de Roraima (CIR), sem dúvida, representa parcela dos índios dessa região. O CIR defende, como sempre defendeu, a demarcação, com a retirada dos não-índios da reserva. Porém, forçoso é reconhecer que existem outras organizações indígenas que também representam parte desses índios, tais como, a Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIR), a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima (SODIURR), a Associação Regional Indígena do Rio Kinô ao Monte de Roraima (ARIKON), o Conselho dos Povos Indígenas Ingaricó (COPING), e a Aliança de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima (ALIDICIR).

A partir dos dados fornecidos pela Secretaria de Estado do Índio do Governo de Roraima (Anexo 06), onde são identificadas as Comunidades Indígenas e as Organizações em que as mesmas são cadastradas, pode-se constatar que, apesar do CIR apresentar-se como a Organização que coordena a grande maioria das malocas da região Raposa Serra do Sol (quase 60%), essa situação fica alterada quando se faz a análise, em termos de população (menos da metade, ou seja, 47,2%). Fato esse, explicável pela dimensão reduzida das malocas vinculadas ao CIR. Note-se que a evolução recente do número de malocas da região Raposa Serra do Sol tem sido marcante. Em 1977, existiam apenas 60 comunidades indígenas identificadas na região. Hoje, em 2004, esse número é de 198 malocas, principalmente pelo processo de subdivisão de malocas.

Organização

N° de Malocas

%

População

%

CIR

117

59,4

 7.739

47,0

APIR

  14

  7,1

 1.542

  9,4

ALIDCIR

  21

10,7

    887

  5,4

SODIURR

  37

18,8

 5.231

31,7

ARIKON

    1

  0,5

      95

   0,6

PRONESP

    1

  0,5

      75

   0,5

COPING

    6

  3,0

     895

   5,4

TOTAL

197

100,0

16.464

100,0

            Fonte: Secretaria de Estado do Índio (2004).

As entidades indígenas não alinhadas com o CIR, juntamente com expressiva parcela da população não indígena, defendem a exclusão de aproximadamente 10% da área a demarcar, englobando as áreas alagadas do Rio Surumu, em face de sua grande capacidade produtiva, a fim de facilitar o desenvolvimento da região e sua integração com a sociedade nacional.

O grupo de trabalho interinstitucional criado pela Portaria n° 1.141/92 contem dez (10) índios, todos indicados pelo CIR. Compor um grupo de trabalho com a participação indígena indicada apenas pelo CIR é, no mínimo, parcial e injusto, por não conter representação das outras instituições e dos outros índios não favoráveis à demarcação, de forma contínua. Pelo menos no que diz respeito à representação indígena, a escolha dos membros da comissão foi tendenciosa ao favorecer apenas um dos lados da discussão.

É genericamente reconhecido o fato de que a Igreja Católica tem desempenhado importante papel de defesa e de ajuda aos povos indígenas de Roraima. Sendo o Estado Brasileiro laico, não se vê razão para que a Igreja Católica possua representante algum em um grupo técnico interinstitucional criado por um órgão público federal. Além disso, é também questionável a participação dessa congregação religiosa com dois representantes, um indicado pelo CIMI (sem contar com o economista da USP, também indicado pelo CIMI) e outro pela Diocese de Roraima, enquanto que os outros grupos religiosos, muitos dos quais contrários à demarcação de forma contínua, que também atuam nessa área prestando serviços relevantes aos povos indígenas, não possuem representação alguma nesse grupo técnico interinstitucional. Novamente, houve parcialidade no processo de escolha dos representantes das diferentes instituições para compor o grupo interinstitucional de trabalho encarregado de proceder à identificação e à demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

No que diz respeito à participação do Governo do Estado de Roraima, o Sr. Robério Bezerra de Araújo, acompanhado por seis técnicos agrícolas, foram designados, pela Portaria n° 1.141, como representantes técnicos do Estado de Roraima. Entretanto, o Governador havia designado, por Decreto (Anexo 07), “os senhores Luiz Aimberê Soares de Freitas, Robério Bezerra de Araújo e José Augusto Soares”, (fls. 1.343 e 1.344; Proc. FUNAI BSB 3233/77) como seus representantes. A FUNAI tomou ciência desse Decreto por meio de ofício do então Chefe do Gabinete Civil do Governo do Estado de Roraima, senhor Luiz Aimberê, porém desconsiderou tais indicações.

A chefe de gabinete do Secretário Robério, posteriormente, indica dois motoristas para “compor a equipe de demarcação da área Raposa Serra do Sol”. No lugar dos representantes do Governo do Estado (Aimberê, então Secretário Chefe do Gabinete Civil do Governo do Estado de Roraima, e José Augusto, fazendeiro da Região Raposa Serra do Sol), a portaria da FUNAI apresenta, ao lado do então Secretário de Interior, Justiça e Meio Ambiente, Robério Araújo, seis funcionários do Estado de Roraima, como técnicos agrícolas, incluídos os dois motoristas indicados. É incompreensível como o executivo estadual daquela época (o Governador e dois de seus Secretários de Estado) tenha permanecido em silêncio frente à situação embaraçosa criada pela FUNAI, ao não respeitar a indicação dos representantes do Governo.

Mais agravante ainda, a Comissão de Peritos teve a oportunidade de conversar com o Sr. Antônio Humberto Bezerra de Matos (um dos técnicos agrícolas, representante do Governo do Estado) que afirmou não ser técnico agrícola e que não tomou conhecimento de sua nomeação pela Portaria n° 1.141, e nunca participou de atividade alguma relativa à demarcação em questão. Chegou a afirmar que nunca esteve na área Raposa Serra do Sol. A Comissão recebeu a visita do Sr. Gerôncio Gomes Teixeira (outro componente do GT) que informou que não era técnico agrícola e sim, Auxiliar Operacional Agropecuária e que esteve na área Raposa/Serra do Sol conduzido pelo motorista Maíldes e acompanhando um “doutor de Brasília”. Seu trabalho foi única e exclusivamente “medir alguns currais e contar algumas árvores” a mando do “doutor”, em fazendas da região. Ficou surpreso ao saber que fazia parte de um Grupo Técnico Interinstitucional de tanta relevância para o Estado de Roraima e que representaria o Governo do Estado, nessa Comissão. A Comissão de Peritos conversou também com os Senhores Vagner Amorim de Souza e Maíldes Fabrício Lemos (também pertencentes ao GT, como técnicos agrícolas) que afirmaram não serem técnicos agrícolas e, sim, motoristas, e que não sabiam que faziam parte do Grupo Técnico. A única atividade de ambos no processo de demarcação foi relativa à responsabilidade de conduzir algumas pessoas à área pretendida.

 

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